Enquanto a influenciadora Virginia Fonseca foi recebida como pop star na CPI das Bets, com flashes, elogios e tratamento privilegiado, mesmo sendo investigada por divulgar plataformas de jogos ilegais, a maranhense Andressa Tainá Lima de Sousa se encontra presa preventivamente, acusada de planejar a morte de autoridades com a ajuda espiritual de seu pai de santo.
Ambas são influenciadoras digitais e foram associadas, de forma direta ou indireta, a condutas enquadráveis no tipo penal de exploração de jogos de azar. Entretanto, o desfecho jurídico de cada uma revela, com clareza, a realidade do sistema penal brasileiro, ou seja, o rigor da lei para os periféricos, e o benefício da dúvida para os famosos.
*CRIME IMPOSSÍVEL:*
Tainá foi presa na sexta-feira (1º), após a degravação de mensagens privadas com seu líder religioso. Os diálogos, evidentemente espirituais, tratavam de “trabalhos” para “afastar pessoas negativas” por meio de rituais tradicionais, sem qualquer plano, ato preparatório ou instigação à violência.
Para o ordenamento jurídico vigente, trata-se de um crime impossível por ineficácia absoluta do meio, muito bem capitulado no art. 17 do Código Penal. Na prática, a tentativa é penalmente irrelevante quando o instrumento utilizado é, por sua natureza, absolutamente incapaz de produzir o resultado.
Contudo, infelizmente e subjetivamente, a autoridade policial resolveu dar uma interpretação diferente, o que acabou ensejando a expedição do decreto prisional em desfavor da influenciadora.
*ALCIONE FEZ O MESMO E FOI APLAUDIDA:*
Em diversas manchetes de portais brasileiros, a cantora Alcione, ícone da música popular brasileira, e que também é maranhense, declarou publicamente que faria uma “macumbinha” para que o presidente Donald Trump largasse o Brasil de mão”. A fala viralizou, gerou memes, rendeu aplausos, e foi interpretada como manifestação legítima da fé afro-brasileira.
A diferença de tratamento é gritante. Com prestígio internacional, a Marrom não foi alvo de investigação. Já Tainá, jovem negra da periferia, está encarcerada pelo mesmo tipo de expressão, reverberando, de forma latente, a seletividade da persecução penal, digo, um instrumento de reprodução da desigualdade social e racial.
*UMA PRISÃO NEGADA, OUTRA CONCEDIDA: O PESO DA “LISTA DOS TRABALHOS”:*
No início da investigação, o delegado responsável chegou a solicitar a prisão de influenciadora com base na suspeita de envolvimento com jogos, organização criminosa e lavagem de dinheiro. O pedido foi negado, que impôs apenas medidas cautelares.
Outrossim, após o surgimento da chamada “lista dos trabalhos”, expressão extraída de conversa espiritual com seu pai de santo, apesar de não representar risco concreto à ordem pública, o Judiciário entendeu por bem decretar prisão preventiva.
E o que isso significa? a prisão foi motivada por conteúdo subjetivo, religioso, simbólico e não por conduta criminosa real.
Hoje, a exceção virou regra, e a regra constitucional de que a liberdade é a norma foi relegada ao plano teórico.
A prática revela que quando o réu é pobre, negro e sem influência, o cárcere é a primeira opção.
*RACISMO RELIGIOSO E PENALIZAÇÃO DA FÉ NEGRA:*
Se Tainá tivesse feito seus pedidos em forma de oração cristã, ou seja, “Senhor, afasta os meus inimigos”, será que ela teria sido presa? No entanto, por se tratar de práticas de matriz africana, a espiritualidade foi interpretada como ato preparatório de crime.
É o preconceito religioso operando sob o manto da legalidade. Assim, o que se criminaliza não é o fato em si, mas quem pratica, de onde vem e a fé que professa.
E o pior é que o caso de Taina não é isolado. É reflexo de um Judiciário que pune com severidade quem é pobre, negro e periférico, mas hesita em aplicar a lei a quem é rico, branco e famoso.
A liberdade religiosa, a presunção de inocência e a igualdade de tratamento devem ser mais do que princípios escritos, precisam ser respeitados na prática. Porque quando o Estado escolhe quem punir, ele deixa de ser justo e passa a ser cúmplice da exclusão.